domingo, 23 de dezembro de 2007

Predomínio do Sentido Interior

Mesmo que ainda me empregue nenhuma responsabiliade sobre a frequência de atualizações minhas, este espaço foi, por este ano, usado com muito cuidado e carinho. Não tenho dúvidas que nos últimos deixei de estar presente como gostaria. Mas isso vale um pouco para tudo: Minha casa, minha familia, meus amigos...

Então, despretenciosamente abro meu e-mail a empresa - aqueles onde chovem cobranças, prazos e as boas notícias tardam - e, entre os bons intencionados cartões de Natal diversos, constava um em especial. Um de um dos Diretores de minha empresa como um texto... Não vou, agora, dizer o autor. Tenho por mim que aqui, nesta linha de cima, algumas das pessoas que mais frequentam este espaço já deram o nome.

O que me impressionaou foi o mesmo de outras situações, parecidas com esta: Eu diversifico, até Dostoievski tenho me arriscado, mas as mensagens de maior valor são frequentemente assinadas pela mesma pessoa. Então, fecho esta postagem com um esclarecimento - breve, porém suficiente - sobre minhas ausências, e com mais uma afirmação de minha admiração e indentificação particular como este que assina o texto abaixo.

...
Era eu um poeta estimulado pela filosofia e não um filósofo com faculdades poéticas. Gostava de admirar a beleza das coisas, descobrir no imperceptível, através do diminuto, a alma poética do universo.

A poesia da terra nunca morre. Podemos dizer que as eras passadas foram mais poéticas, mas não podemos dizer (...)

A poesia encontra-se em todas as coisas - na terra e no mar, no lago e na margem do rio. Encontra-se também na cidade - não o neguemos - é evidente para mim, aqui, enquanto estou sentado, há poesia nesta mesa, neste papel, neste tinteiro; há poesia no barulho dos carros nas ruas, em cada movimento diminuto, comum, ridículo, de um operário, que do outro lado da rua está pintando a tabuleta de um açougue.

Meu senso íntimo predomina de tal maneira sobre meus cinco sentidos que vejo coisas nesta vida - acredito-o - de modo diferente de outros homens. Há para mim - havia - um tesouro de significado numa coisa tão ridícula como uma chave, um prego na parede, os bigodes de um gato. Há para mim uma plenitude de sugestão espiritual em uma galinha com seus pintinhos, atravessando a rua, com ar pomposo. Há para mim um significado mais profundo do que as lágrimas humanas no aroma do sândalo, nas velhas latas num monturo, numa caixa de fósforos caída na sarjeta, em dois papéis sujos que, num dia de ventania, rolarão e se perseguirão rua abaixo. É que a poesia é espanto, admiração, como de um ser tombado dos céus, a tomar plena consciência de sua queda, atônito diante das coisas. Como de alguém que conhecesse a alma das coisas, e lutasse para recordar esse conhecimento, lembrando-se de que não era assim que as conhecia, não sob aquelas formas e aquelas condições, mas de nada mais se recordando.

Fernando Pessoa em "O Eu Profundo" (circa 1910).

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

Estou Cansado

Coisa de Pessoa. Sempre que me aventuro a descobrir poesias novas, fico na dúvida entre Pessoa e algum outro. Às vezes é Pessoa contra Pessoa; Alberto Caeeiro contra Álvaro, contra Ricardo... Ele geralmente ganha, ou se não ganha já fica engatilhado para a próxima.
Esta poesia que trago não teve concorrentes. Eu a procurarva e, então, a encontrei. Não fiquei surpreso com autoria. Boa leitura!

...
Estou cansado, é claro,
Porque, a certa altura, a gente tem que estar cansado.
De que estou cansado, não sei:
De nada me serviria sabê-lo,
Pois o cansaço fica na mesma.
A ferida dói como dói
E não em função da causa que a produziu.
Sim, estou cansado,
E um pouco sorridente
De o cansaço ser só isto —
Uma vontade de sono no corpo,
Um desejo de não pensar na alma,
E por cima de tudo uma transparência lúcida
Do entendimento retrospectivo...
E a luxúria única de não ter já esperanças?
Sou inteligente; eis tudo.
Tenho visto muito e entendido muito o que tenho visto,
E há um certo prazer até no cansaço que isto nos dá,
Que afinal a cabeça sempre serve para qualquer coisa.

Álvaro de Campos

quarta-feira, 31 de outubro de 2007

Soneto

Dei-me discutindo com uma boa e letrata amiga sobre composições de alguns sonetos os quais eu mesmo assinava autoria. Sei que os sonetos foram para mim os primeiros contatos com a poesia, mais precisamente os sonetos de Vinícius; Alguns ainda lembro de cor... De qualquer forma, a questão que levantamos não referia-se ao conteúdo mas, sim, a estrutura de um soneto! Vi que, muitas vezes (a maioria) eu pecava em sílabas a mais ou a menos; Errava também nas rimas as quais não seguiam a arquitetura proposta, entre outras coisas. A questão é que encontrei regras (no número de sílabas, número de linhas, nas estrófes, nas rimas) e, depois disso, passei tirar a prova de alguns sonetos (ver se os caras conheciam esta estrutura): A maioria correspondia. Camões, impecável; Vinícius, Chico Buarque (Soneto), Ariano Suassuna... Todos eles. E, hoje, encontrei mais um. Soneto de conteúdo nenhum, mas rigorosamente dentro da arquitetura de um legítimo Soneto. Boa leitura!
...

Penicilina puma de casapopéia
Que vais peniça cataramascuma
Se parte carmo tu que esperepéia
Já crima volta pinda cataruma.

Estando instinto catalomascoso
sem ter mavorte fide lastimina
és todavia piso de horroroso
e eu reclamo - Pina! Pina! Pina!

Casa por fim, morre peridimaco
martume ezole, ezole martumar
que tua para enfim é mesmo um taco.

e se rabela capa de casar
estrumenente siba postguerra
enfim irá, enfim irá pra serra.

Millôr Fernandes

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Os meus amigos

Há tempos que não atualizo este espaço. Isso não quer dizer, de forma alguma, que não tenho passado por aqui. Estou sempre por aqui, lendo as mensagens, respondendo aos e-mails e tudo mais. Infelizmente, deixei de trazer para cá (ao menos por estes tempos) os últimos textos que recebi; - Inclusive agradecimento especial a quem tem me enviado - E como medida permanente (..até porque eu não estou nem aí para as provisórias), trago um texto especial que me chegou às mãos pela pessoa mais especial que um dia pode existir para mim: minha mãe.
O texto é assinado por Oscar Wilde. Normalmente, em casos como este, eu me proponho a investigar para conferir o crédito do texto. Mas gostei tanto, me fez tão sentido, que tenho medo de encontrar um autor que eu desconheça e perca um pouco do que há de credibilidade em um autor como Oscar. Assim, não trago assinatura, só o conteúdo.
Boa leitura!
...
Escolho meus amigos não pela pele ou outro
aspecto qualquer, mas pela pupila.
Tem que ter brilho questionador e
tonalidade inquietante.
A mim não interessam os bons de espírito nem os maus
de hábitos.
Fico com aqueles que fazem de mim louco e santo.
Deles não
quero resposta, quero eu avesso.
Que me tragam dúvidas e angústias e
agüentem o que há de pior em mim.
Para isso, só sendo louco. Escolho
meus amigos pela cara lavada e pela alma exposta.
Não quero só o ombro ou o
colo, quero também sua maior alegria.
Amigo que não ri junto não sabe sofrer
junto.
Meus amigos são todos assim: metade bobeira, metade seriedade.
Não quero risos previsíveis nem choros piedosos.
Quero amigos sérios,
daqueles que fazem da realidade sua fonte de aprendizagem, mas lutam!
Para
que a fantasia não desapareça. Não quero amigos adultos nem chatos.
Quero-os metade infância e outra metade velhice.
Crianças, para que não
esqueçam o valor do vento no rosto e velhos, para que nunca tenham pressa.
Tenho amigos para saber quem eu sou.
Pois os vendo loucos e santos,
bobos e sérios, crianças e velhos, nunca me esquecerei de que "normalidade" é
uma ilusão imbecil e estéril.

sábado, 22 de setembro de 2007

:: Literatura Privada

Os cabelos que guarda para ti confrontam
com meus dedos.
A minha mão que sai do meu corpo, pertence já não a mim e,
sim, aos seus fios escuros que te protegem do sol e da calvice.

Sabes que houve demasiados confrontos entre a existência e alma, a alma... Ambos conhecem-se apenas pouco, todavia acredite que não são agressões reprimidas de uma vida real, mas carinhos largos que penteiam seus cabelos, sua alma, sua
existência...

Peço que não se ponha a amuar-se contra meus dedos dedicados,
por fim, que tocam seu couro e fecham os olhos que tenho em troca de uma suposta troca de brandos sinceros e, por então, encaminhe esclarecimentos, não ao couro, mas à alma que te sustenta.


Proferi alguns dos advérbios que sei confiante particularmente na clausura de minhas idéias longas, consequência da inocência empírica que mantenho por laser; E, assim, escrevo poesias despretensiosas cuja razão se aproxima somente da prosódia - a qual investigo e tantas vezes erro - esqueço, portanto, as conseqüências humanas de uma literatura privada, mas que
sei disso?

Permaneço, então, alternando meus movimentos em longos caminhos com os braços que sustentam a existência de seu corpo e persisto com alguns dedos da mão mais próxima, a outra repousa; Prossigo em afáveis contatos do corpo que tenho contra os fios que nasceram sob a riqueza de sua excelência. São eles que constroem nós variáveis e desafiam-me a soltá-los ou a discutí-los e, assim, apenas desisto se lhe trago alguma dor.

Luiz Felipe Angulo Filho

domingo, 26 de agosto de 2007

Os poemas

No princípio da gestação deste blog, eu reforçava contundentemente que tratava-se de um projeto sem muita exigência (ou nenhuma) ao que se refere às atualizações. Evidente que ao passo que desenvolvo este canal e, tive esta experiência, dedico-me à regularidade, ganho em número de acessos, e-mails e comentários; No entanto, o objetivo não é este e, sim, manter o compromisso com o conteúdo.
Assim, retomo a já pretendida sequência de Quintana, interrompida por forças maiores do que as teclas de meu computador. Boa leitura!
...

"Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam vôo
como de um alçapão.
Eles não têm pouso
nem porto
alimentam-se um instante em cada par de mãos
e partem.
E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
no maravilhoso espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti..."

Mário Quintana

quarta-feira, 22 de agosto de 2007

"Aos mestres com carinho"

Hà aproximadamente dois anos, tive o privilégio memorável de presenciar um casamento especial: O de meus avós. Depois de 50 anos de casamento, a familia - e isso é muito particular - optou por organizar uma nova festa e renovar os votos eternos de amor. Mais do que isso, ainda tive a oportunidade de poder fazer um pequeno discurso na cerimônia, coberto de emoção e linhas escritas por mim. Levo comigo este sentimento e, agora, divido com todos; Como em muitas outras ocasiões tenho feito por aqui.
...
Aos mestres, com carinho

“De tudo ao meu amor serei atento...” – É disso que falamos: de amor.
Ele doutor, de feições enigmáticas que mascaram a doçura daquele que se dedicou a trazer vidas ao mundo; Um insistente bigode, que resiste aos tempos no teto de uma boca dona de um extenso repertório inofensivo de palavras fortes: Filho, Pai e avô. Dele, ela compartilha sua doçura, a bondade. Em si o amor sobretudo de se fazer mulher, de ser mãe. Cabelos de nuvens e corpo de terra, que sobrevive ao tempo rijo, forte e belo. Eles, um casal. Que se amou indiscriminadamente ao redor do mundo, ao redor da vida. Frondosos e gratuitos, destemidos e maduros, ambos unidos formam, hoje, há meio século, uma única pessoa.

Curioso como o tempestivo avançar dos anos conseguiu sustentar pessoas que de semelhante guardam as diferenças. E falo de todos nós, por todos nós, que crescemos ao redor destes, por vontade deles. Irmãos, filhos, netos. Bisnetos? ... Ainda não. Permitirmo-nos todos a tentar agradecê-los, afoitos e humildes, pela dádiva de termos nos encontrado sãos nesta terra, nesta vida que recebemos do encontro do coração com a vida real.

Mãos lânguidas, leves, de formas geométricas anguladas, interagem um movimento circular alternando entre o carinho e o tricô. Mãos firmes, cirúrgicas, que investem movimentos na composição de uma pintura; Mãos que sustentaram pesos à medida que acariciaram corpos com a sempre presente ternura. Mãos que se tocam, que conversam, que choram. Mãos que se conhecem, que são as mesmas! Mãos que se juntaram.

Beijemos um ao outro. Sabemos sim que o rastro da fragrância indesejável das más notícias sobrevive, no entanto olhemos por cima. Olhemos pra o alto, onde de longe enxergamos a excelência, o ideal. Somos bons, somos todos do bem. Incluo, então, aqueles que de tão especiais, já vivem próximos ao céu. Vivamos afinal! Aproveitem, ensinem-nos suas experiências; Contem-nos suas histórias, sorriam e saibam, por toda suas vidas, que são por demais amados e não apenas um pelo outro, mas por todos nós que formamos sua família."

Luiz Felipe Angulo Filho
12/11/2004
Em homenagem à minha grande avó Regina, falecida em 10/08/2007 e eterna em meu coração.

quarta-feira, 1 de agosto de 2007

Mais uma de Veríssimo

Quebrei mesmo a sequência de Quintana que havia me proposto, mas retomo em breve.
Este texto recebi logo agora de uma amiga poeta francesa; Não tinha como não dividí-lo. Merci Beaucoup!


O rouge virou blush
O pó-de-arroz virou
pó-compacto
O brilho virou gloss
O rímel virou máscara incolor
A Lycra virou stretch
Anabela virou plataforma
O corpete virou porta-seios
Que virou sutiã
Que virou lib
Que virou silicone
A peruca virou
aplique, interlace, megahair, alongamento
A escova virou chapinha
Problemas de moça" viraram TPM
Confete virou MM
A crise de nervos
virou estresse
A chita virou viscose.
A purpurina virou gliter
A brilhantina virou mousse
Os halteres viraram bomba
A ergométrica virou
spinning
A tanga virou fio dental
E o fio dental virou anti-séptico bucal
Ninguém mais vê...
Ping-Pong virou Babaloo
O a-la-carte virou self-service
A tristeza, depressão
O espaguete virou Miojo pronto
A paquera virou pegação
A gafieira virou dança de salão
O que era praça virou shopping
A areia virou ringue
A caneta virou teclado
O long play virou CD
A fita de vídeo é DVD
O CD já é MP3
É um filho onde éramos seis
O álbum de fotos agora é mostrado por email
O namoro agora é virtual
A cantada virou torpedo
E do "não" não se tem medo
O break virou street
O samba, pagode
O carnaval de rua virou Sapucaí
O folclore brasileiro, halloween
O piano agora é teclado, também
O forró de sanfona ficou eletrônico
Fortificante não é mais Biotônico
Bicicleta virou Bis
Polícia e ladrão virou counter strike
Folhetins são novelas de TV
Fauna e flora a desaparecer
Lobato virou Paulo Coelho
Caetano virou um chato
Chico sumiu da FM e TV
Baby se converteu
RPM desapareceu
Elis ressuscitou em Maria Rita?
Gal virou fênix
Raul e Renato, Cássia e Cazuza, Lennon e Elvis,
Todos anjos, agora só tocam lira...
A AIDS virou gripe
A bala antes encontrada agora é perdida
A violência está coisa maldita!
A maconha é calmante
O professor é agora o
facilitador
As lições já não importam mais
A guerra superou a paz
E a sociedade ficou
incapaz.....
De tudo.
Inclusive de notar essas
diferenças.

Luiz Fernando Veríssimo

domingo, 29 de julho de 2007

Eu e a brisa

Nós aqui neste país pobre de tão rico (ou rico de tão pobre), temos uma fartura literárea, poética e musical digna de si mesmo. A expressão da poesia é muito relacionada à música. É por isso que me incomoda tanto ver tanta falta de cuidado nas palavras das músicas mais tocadas nas rádios populares; Mas, é aí que entra outra grande riqueza: a diversidade.
Dei-me uma pausa da poesia crua e venho para esta semana com uma letra de Johnny Alf, Eu e a Brisa. Trata-se de uma das poesias mais delicadas e modestas que já li. Simples. Faço questão de dividí-la, fundamentalmente por sentir falta de tantos elementos e atributos que, aqui, esta poesia esbanja. Boa semana!

...

"Ah! se a juventude que esta brisa canta
Ficasse aqui comigo mais um pouco
Eu poderia esquecer a dor
De ser tão só prá ser um sonho
Dai então quem sabe alguém chegasse
Buscando um sonho em forma de desejo
Felicidade então prá nós seria
E , depois que a tarde nos trouxesse a lua
Se o amor chegasse eu não resistiria
E a madrugada acalentaria a nossa paz
Fica, oh brisa fica pois talvez quem sabe
O inesperado faça uma surpresa
E traga alguém que queira te escutar
E junto a mim , queira ficar"

Johnny Alf

quinta-feira, 26 de julho de 2007

A morte absoluta

Desculpem-me sinceramente aos amigos que acompanham-me por aqui. Nos úlitmos dias tive um encontro de muitas para resolver e indefinições em minha cabeça. Sei não, mas as últimas semanas muitas coisas aconteceram, para todos os lados; Mas é para ser assim, não? Os dias passam independente de nós e as coisas acontecem a todo tempo, em todos os lugares. Bem diz é minha mãe quando censura nossos hábitos de negarmos a certeza da morte desperdiçando bons momentos da (incerta) vida de agora.

E, então, depois de tomar emprestado algumas de Pessoa e Drummond, os mais presentes nos últimos, trago Quintana. Pretendo explorar um pouco de sua obra, trazendo algumas das valorosas linhas que escrevera. Boa leitura!

...

Morrer.
Morrer de corpo e de alma.
Completamente.

Morrer sem deixar o triste despojo da carne,
A exangue máscara de cera,
Cercada de flores,
Que apodrecerão - felizes! - num dia,
Banhada de lágrimas
Nascidas menos da saudade do que do espanto da morte.

Morrer sem deixar porventura uma alma errante...
A caminho do céu?
Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu?

Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra,
A lembrança de uma sombra
Em nenhum coração, em nenhum pensamento,
Em nenhuma epiderme.

Morrer tão completamente
Que um dia ao lerem o teu nome num papel
Perguntem: "Quem foi?..."

Morrer mais completamente ainda,
- Sem deixar sequer esse nome.

Mário Quintana

quinta-feira, 19 de julho de 2007

A Longo Prazo

Durante toda esta semana, por conta do epsódio desnecessáriamente violento ocorrido com a TAM, deu-me uma mistura de sentimentos entre fragilidade e motivação. Definitivamente o que houve não passou por mim, pegou e ficou. Vi o como a vida é um triz, um soslaio, um quase. E, assim, vi-me descuidado e, inclusive, muito indisciplinado ao que refere-se aos agradecimentos que se fazem intimamente necessários visto minha boa saúde, familia e tudo o que me enriquece. Refleti.
Com isso, lembrei-me de um texto de Pedro Bial o qual me indentifiquei muito com o conteúdo. Foi publicado dia depois da morte prematura de um colega de trabalho dele. Já havia postado esta mensagem, mas tomo a liberdade de repetí-la.

...

Assisti a algumas imagens do velório do
Bussunda, quando os colegas do Casseta & Planeta deram seus depoimentos.
Parecia que a qualquer instante iria estourar uma piada. Estava tudo sério
demais, faltava a esculhambação, a zombaria, adesestruturação da cena.Mas nada
acontecia ali de risível, era só dor e perplexidade, que é mesmo o que e causa
em todos os que ficam.

A verdade é que não havia nada a acrescentar no roteiro: a
morte, por si só, é uma piada pronta. Morrer é ridículo.Você combinou de jantar
com a namorada, está em pleno tratamento dentário, tem planos pra semana que
vem, precisa autenticar um documento em cartório, colocar gasolina no carro e no
meio da tarde morre. Como assim? E os e-mails que você ainda não abriu, o livro
que ficou pela metade, o telefonema que você prometeu dar à tardinha para um
cliente? Não sei de onde tiraram esta idéia: morrer. A troco? Você passou mais
de 10 anos da sua vida dentro de um colégio estudando fórmulas químicas que não
serviriam pra nada, mas se manteve lá, fez as provas, foi em frente. Praticou
muita educação física, quase perdeu o fôlego, mas não desistiu. Passou
madrugadas sem dormir para estudar pro vestibular mesmo sem ter certeza do que
gostaria de fazer da vida, cheio de dúvidas quanto à profissão escolhida, mas
era hora de decidir, então decidiu, e mais uma vez foi em frente...De uma hora
pra outra, tudo isso termina numa colisão na freeway, numa artéria entupida, num
disparo feito por um delinqüente que gostou do seu tênis. Qual é? Morrer é um
chiste. Obriga você a sair no melhor da festa sem se despedir de ninguém, sem
ter dançado com a garota mais linda, sem ter tido tempo de ouvir outra vez sua
música preferida. Você deixou em casa suas camisas penduradas nos cabides, sua
toalha úmida no varal, e penduradas também algumas contas. Os outros vão ser
obrigados a arrumar suas tralhas, a mexer nas suas gavetas, a apagar as pistas
que você deixou durante uma vida inteira. Logo você,que sempre dizia: das minhas
coisas cuido eu! Que pegadinha macabra: você sai sem tomar café e talvez não
almoce, caminha por uma rua e talvez não chegue na próxima esquina, começa a
falar e talvez não conclua o que pretende dizer.

Não faz exames médicos, fuma
dois maços por dia, bebe de tudo, curte costelas gordas , mulheres e morre num
sábado de manhã. Se faz check-up regulares e não tem vícios, morre do mesmo
jeito. Isso é para ser levado a sério? Tendo mais de cem anos de idade, vá lá, o
sono eterno pode ser bem-vindo. Já não há mesmo muito a fazer, o corpo não
acompanha a mente, e a mente também já rateia, sem falar que há quase nada
guardado nas gavetas. Ok, hora de descansar em paz. Mas antes de viver tudo,
antes de viver até a rapa? Não se faz. Morrer cedo é uma transgressão, desfaz a
ordem natural das coisas. Morrer é um exagero. E, como se sabe, o exagero é a
matéria-prima das piadas. Só que esta não tem graça. Por isso viva tudo que há
para viver.Não se apegue as coisas pequenas e inúteis da
Vida...Perdoe....sempre!!!



Pedro Bial

segunda-feira, 16 de julho de 2007

Não Passou

Muitas das coisas que tento, com insistência exagerada, em minhas linhas é arrumar palavras que me valham um sentimento, às vezes dois ou três. Penso que na maioria das vezes fracasso; Muito embora, o exercício me valha demais. Faz-me bem, ao menos, tentar. No entanto, a discussão atual que mais me entretem é o fato da real existência destes sentimentos exagerados: Amor demais, dor demais, tempo demais. Tudo é demais? Não pode se tratar de idéia pura, é exagero de meninice - Criançola, como li em Dom Casmurro;

"A experiência de nada serve à gente.
É um médico tardio, distraído:
Põe-se a forjar receitas
quando o doente já está perdido..."
Mário Quintana
...
NÃO PASSOU
Passou?
Minúsculas eternidades
deglutidas por mínimos relógios
ressoam na mente cavernosa.
Não, ninguém morreu, ninguém foi infeliz.
A mão- a tua mão, nossas mãos-
rugosas, têm o antigo calor
de quando éramos vivos. Éramos?
Hoje somos mais vivos do que nunca.
Mentira, estarmos sós.
Nada, que eu sinta, passa realemente.
É tudo ilusão de ter passado.
Carlos Drummond de Andrade

segunda-feira, 9 de julho de 2007

Versejo

Nas lisuras sútis do engano;
Em persistências às retinas (minhas) aflitas,
retiro o que há de humanidade em minhas fitas,
e vou ter com o mundo, antes profano,
médios diálogos entre o mim e o jamais.
Peço franco perdão, enfim, ao voltar de trono nenhum:
Ei-nos de rigorosos tratos divinos absolutos e iguais
abençoados os que atendem por chamamento algum,
por saberem-se sagrados e imperfeitos demais; Demais.
Ao mais, tudo o que há, é caminho.
Desleal de medida precisa àqueles cândidos quais, ainda, são;
Os que deitam e apontam estrelas e, mesmo sozinho,
Orientam-se às recompensas infindas de sua devoção.
Ah...Meus poucos presentes e a demora da paz;
As rimas dos versos do mundo, são tantas e mais,
e existem, por perto ou nem tanto, ao talento arguto
Dos versos de nossa análoga composicão.
...
Luiz Felipe Angulo Filho

sexta-feira, 6 de julho de 2007

.:: Falsa ode às lagrimas do mundo ::.

"Enquanto acusava a mim de dor, -
E, porquanto, me tinha solitário de tantos confortos -
Enfraquecia-me em domicílio,

detestando o tempo e a água fria.
Eis que aludia-me a gramática de versos muitos

e esforçava-me, ao menos, às prosódias de
minha boca em satisfação a mim.
Tinha por tanto que ocupava um papel de
finório,
por isso as palavras difíceis, sem uso
sequer;

Ao fim de exprimir este movimento de
mim,
em aclamar por ser e nem tanto sentir,
o que me encontro sobejamente;
Sinto como apenas sentisse,
exaustivamente;

Hei de comprimir meus sentimentos ou,
por então, manifestá-los ao que for aceito
pelos corpos que são outros

e, por assim, reservam distintas
lembranças de histórias comuns.
(Vasculhem os auxílios gramaticais; és
improfícuo, vão a traduzir a alma humana. Nem sei que insisto…)


Pus-me em atitude de choro
encoberto,
e permiti as lágrimas que vieram.
Ou simplesmente choro, para aqueles que
vêm tarde.


Em mim mitigaram as laterais da face,
ressecadas da umidade de meu próprio
produto;

Enfim, vi-me em frente ao resto que tinha,
minha vida

(como se apresenta unânime as palavras,
quão fortes se valem; Vida, jamais teremos sequer sinônimo);
Minha vida.

Ao outro lado, defronte, sorria, à todos,
mordidas claras de um couro colorido.
Uma mulher que se faz existir apenas, uma,
apenas;

Portava silhueta recta, pernas compridas
e ao fim de todas duas, pecíolos dourados
apontados ao chão.

O calcanhar era mais alto que os dedos;
Estes suportavam a beleza exagerada de
quem vinha,
minha; Minha última mulher.
Soube de nada, pouco apenas.

Não me pus a decifrar e, então,
edifiquei-me os meus em acariciá-la;
Sabia, a altura, das extravagâncias que
acossava:
Eras uma, de olhos diretos e de
soslaios
e mãos iguais as quais me uno em sonhos de
princesa.

Transfigurava-se à medida em que guardava
sua vigília sem muita esperança,

pois o perdera em outra poesia.
Esposa de desejo excessivo em não desejar;
Repudia o tabaco e da mesma forma esperar.
Pedia-me que fosse, e implorava por
ser.


Ah… Quantos significados têm as
palavras.
Ao que afortuno-me em usá-las passivas,
serão sempre poucas, que acham?
És comovente o sentimento;
A impossibilidade de resumo,
mas confusas e poucas.
São estas as palavras que
trago,
em inumeráveis linhas quais
significam o labirinto em que convido-os.

Pobre dos amantes...
Incompreendidos e, pior, mesmo tendo com
todos,
mal saberão o que são, amantes, que amam
e, alguns,
improvisam versos de afirmações repetidas,
como as minhas linhas de tristeza e completude.

É amor e amiúde, sustido e oprimido
pelas poucas opções das palavras.


Ela, de unhas vizinhas ao chão, me veio ao
regaço;

Via, por este instante, o que jamais
buscarei aventura em descrever

Chegava-me a comenda de outrora, encargo
antigo e amigo

Pedira, igualmente, que o tempo fosse
bom,
em princípio quando mais verosímel ao
choro -
Chorar é palavra de poesia, contudo
acontece -
E ao reconhecer a sombra no chão de uma
alma,
olhardes para nós, vida, e, por assim,
satisfaça-te a ti na conquista de tantos
outros corações.

Muito embora, a dor não sumira,
o choro insiste e a solidão entorpecida em
ainda ser;
consome-nos sem razão, mas o faz.
As dores de antes, insistem.
Assim, ao que não posso não ter contigo,
vida,
o papel de estéril, molesto;
Basto e agradeço, adormecido,
dolorido e apaixonado."

Luiz Felipe Angulo Filho


quinta-feira, 5 de julho de 2007

LIRA DO AMOR ROMÂNTICO ou a eterna repetição

Esta sequência de versos de Drummond, na minha primeira leitura, foi me chamar atenção lá pelo seu final. Então o reli, uma, e outra e mais uma, ao passo que encontrava novidades e, então, já sabia qual seria minha próxima postagem por aqui. Boa leitura!
...

Atirei um limão n'água
e fiquei vendo na margem.
os peixinhos responderam:
Quem tem amor tem coragem

Atirei um limão n'água,
e caiu enviesado.
Ouvi um peixe dizer:
Melhor é o beijo roubado.

Atirei um limão n'água,
como faço todo ano.
Senti que os peixes diziam:
Todo amor vive de engano

Atirei um limão n'água,
como um vidro de perfume.
Em coro os peixes disseram:
Joga fora teu ciúme.

Atirei um limão n'água,
mas perdi a direção.
Os peixes, rindo, notaram:
Quanto dói uma paixão!

Atirei um limão n'água,
ele afundou um barquinho
Não se espantaram os peixes:
faltava-me o teu carinho.

Atirei um limão n'água,
o rio logo amargou.
Os peixinhos repetiram:
É dor de quem muito amou.

Atirei um limão n'água,
o rio ficou vermelho
e cada peixinho viu
meu coração num espelho.

Atirei um limão n'água,
mas depois me arrependi.
Cada peixinho assustado
me lembra o que já sofri.

Atirei um limão n'água,
antes não tivesse feito.
Os peixinhos me acusaram
de amar com falta de jeito.

Atirei um limão n'água,
fez-se logo um burburinho.
Nenhum peixe me avisou
da pedra no meu caminho.

Atirei um limão n'água,
de tão baixo ele boiou.
Comenta o peixe mais velho:
Infeliz de quem não amou.

Atirei um limão n'água,
antes atirasse a vida.
Iria viver com os peixes
a minh'alma dolorida.

Atirei um limão n'água,
pedindo à água que o arraste.
Até os peixes choraram
porque tu me abandonaste.

Atirei um limão n'água.
Foi tamanho o rebuliço
que os peixinhos protestaram:
Se é amor, deixa disso.

Atirei um limão n'água,
não fez o menor ruído.
Se os peixes nada disseram,
tu me terás esquecido?

Atirei um limão n'água,
caiu certeiro: zás-trás.
Bem me avisou um peixinho:
Fui passado pra trás.

Atirei um limão n'água,
de clara ficou escura.
Até os peixes já sabem:
você não ama: tortura.

Atirei um limão n'água
e caí n'água também,
pois os peixes me avisaram,
que lá estava meu bem.

Atirei um limão n'água,
foi levado na corrente.
Senti que os peixes diziam:
Hás de amar eternamente.
Carlos Drummond de Andrade

segunda-feira, 2 de julho de 2007

Motivo

Volto à poesia dos bons. E dos grandes desta vez. Como estou de descanso, reli senão todas, grande parte dos contos e poesias que tenho por aqui. Fiquei satisfeito, especialmente com a sinceridade proposta; Com o resultado e o significado de cada uma delas e, assim, vi Cecília Meireles. Não me lembro de cabeça agora se tenho outra por aqui além de Cecília, mas a predominância dos que assinam minhas postagens é toda masculina. É certo que boa parte das linhas que trouxe vieram de cabeças masculinas inspiradas pela mulher, mas ela também assume autoria, se inspira e escreve e muito!
...

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.


Cecília Meireles

quarta-feira, 27 de junho de 2007

Pessoa admirável és tú, Pessoa...

"Pessoa admirável és tú, Pessoa
Que corresponde ao delato de uma vida vadia e pedinte
E, então, suporta-me como lentes de grau intenso
Entregas inspirações de pessoas à beira do Tejo
Desnuda-nos em partes de denúncias plausíveis -
Aparentemente de todos, todos.

Ei-lo sem mácula, de escrita aberta e variável
De Campos, Reis e Rainhas, todos os teus...
Dá-nos direção ao reflexo infindo da natureza humana;
Ora alterca abertamente, outras tantas contempla
Tens simpatia por mim e por esta gente toda
És, invarialvelmente, aprovado. Pessoa correta, Pessoa.
Invade em linhas retas e muitas tua prosa de títulos desiguais,
Assina por ti e por todos, os teus; Teus rebanhos de antigamente.

E, no entanto, rogo-te, então, a falar de amor
O mais é nada, tal qual me disseste.
Deverias ter criado algum apaixonado, triste de ser
Incomum; Ridículas são as cartas, disseste?
Descreva neste caso amando, este sentimento árido
Que inunda-nos de ansiedade;
Que pessoa não ama?
Traz-me o amor como a Vênus de Milo, esqueça o estúpido binômio...
Com a mesma herdade qual desvenda-nos a alma.
Dirias que pensar no amor é desobedecê-lo?
Não viste Ele fugir do céu e visitar-nos na Terra?

És agora que o sentido sobrepõe-se a razão,
Tudo, absololutamente tudo, menos ter razão
Esgota-nos com seu cheiro rutilante de promessas, conluie!
Enlaça-te as mãos de Lídia, no mesmo rio que te conhece
Levante todo seu corpo da realidade que sente, desvarie
E conte-nos sobre amor, um óbolo sequer
Uma amostra, um riso
Por um instante, não como amante
Mas como pessoa, Pessoa."


Luiz Felipe Angulo Filho

segunda-feira, 18 de junho de 2007

Sou Eu, Fernando Pessoa

Sinceramente, acho interessante a reação que as publicações deste blog causam, especialmente em pessoas mais próximas a mim. De fato, todas as poesias e letras que trouxe fizeram, de alguma forma, parte de um momento - uns curtos outros tantos maiores. Mas antes de qualquer coisa, são mensagens que julgo valiosas, ricas, bonitas. Claro que há identificação, mas às vezes é isso; Identificação.

"(...)Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira (..)"
Ferreira Goulart
Sou Eu

Sou eu, eu mesmo, tal qual resultei de tudo,
Espécie de acessório ou sobressalente próprio,
Arredores irregulares da minha emoção sincera,
Sou eu aqui em mim, sou eu.

Quanto fui, quanto não fui, tudo isso sou.
Quanto quis, quanto não quis, tudo isso me forma.
Quanto amei ou deixei de amar é a mesma saudade em mim.

E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco inconseqüente,
Como de um sonho formado sobre realidades mistas,
De me ter deixado, a mim, num banco de carro elétrico,
Para ser encontrado pelo acaso de quem se lhe ir sentar em cima.

E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco longínqua,
Como de um sonho que se quer lembrar na penumbra a que se acorda,
De haver melhor em mim do que eu.

Sim, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco dolorosa,
Como de um acordar sem sonhos para um dia de muitos credores,
De haver falhado tudo como tropeçar no capacho,
De haver embrulhado tudo como a mala sem as escovas,
De haver substituído qualquer coisa a mim algures na vida.

Baste! É a impressão um tanto ou quanto metafísica,
Como o sol pela última vez sobre a janela da casa a abandonar,
De que mais vale ser criança que querer compreender o mundo —
A impressão de pão com manteiga e brinquedos
De um grande sossego sem Jardins de Prosérpina,
De uma boa-vontade para com a vida encostada de testa à janela,
Num ver chover com som lá fora E não as lágrimas mortas de custar a engolir.

Baste, sim baste! Sou eu mesmo, o trocado,
O emissário sem carta nem credenciais,
O palhaço sem riso, o bobo com o grande fato de outro,
A quem tinem as campainhas da cabeça
Como chocalhos pequenos de uma servidão em cima.

Sou eu mesmo, a charada sincopada
Que ninguém da roda decifra nos serões de província.

Sou eu mesmo, que remédio!

Álvaro de Campos

segunda-feira, 11 de junho de 2007

Soneto do Último Amor

Em que tenho sua companhia
Consisto em ser em ti o que sou
Creio na idéia do absoluto, ou
Obscureço, sem minha alegria

Na poesia de nós estremeço
Traduzo-me em ser por todo seu
Qual propõe-se similar ao céu
No sorriso em que, a ti, mereço

Envaideço ao entregar-te a vida
Amo-te enfim por assentir,
Por minha necessidade cumprida

Quando te amo, sou todo tempo
Disposto a você (apenas) e ao mais atrair
Os beijos seus de cada momento

Luiz Felipe Angulo Filho

quarta-feira, 6 de junho de 2007

A Mulher e o reino

Sinto uma enorme pena de mim mesmo por não poder passar o dia pesquisando poemas. Eu gostaria, sim, de poder ter como esta minha atividade. Alguns eu reconheceria, alguns tantos eu me surpreenderia, alguns poucos eu não gostaria e nos mais ajeitados, me inspiraria. Passo muito a vista em Drummond, leio e releio sua obra; O mesmo com Pessoa que de tanto ler, acho que já posso reconhecer Caeiro, Campos ou Reis. Mas e os outros? Os outros tantos bons e/ou melhores? Gente nossa, como Suassuna, por exemplo. Fico feliz por isso e, em absoluto, por ter ainda muito tempo para conhecê-los um a um.

A mulher e o reino

Oh! Romã do pomar, relva esmeralda
Olhos de ouro e azul, minha alazã
Ária em forma de sol, fruto de prata
Meu chão, meu anel , cor do amanhã

Oh! Meu sangue, meu sono e dor, coragem
Meu candeeiro aceso da miragem
Meu mito e meu poder, minha mulher

Dizem que tudo passa e o tempo duro
tudo esfarela
O sangue há de morrer

Mas quando a luz me diz que esse ouro puro se acaba pôr finar e corromper
Meu sangue ferve contra a vã razão
E há de pulsar o amor na escuridão

Ariano Suassuna

quinta-feira, 31 de maio de 2007

Deste amor

Ao que me reservo os encargos de minha alma?
Insinuo censuras ao sentimento que trago -
Não ao que faço, absolutamente,
Ao que falo todavia.-
Jaz na nascente o cepticismo parvo de mim,
Na medida em que prospera meu novo amor...
De qual amor aludo-me, porém?
Deste que busco sinônimo e desvio-me da forma,
Deste próprio que suporto a autoria;
Deste invicto instante sem fim,
Desta enormidade que me constitui,
Deste argumento inviolável de minha conduta,
Deste que me traz saudades incorrigíveis,
Deste que envidas meus sentimentos outros,

Deste qual não posso não ter.
Deste que tem cheiro de ti.
Deste que tenho.

Luiz Felipe Angulo Filho

terça-feira, 29 de maio de 2007

A Brusca Poesia da Mulher Amada II

Em poucos dias, este gueto - digital - completará um ano de poesias, pensamentos e amigos. Houve fases distintas, pra lá de paradoxais; Como eu. O equilíbrio às vezes apareceu, mas jamais foi uma constante: "(...)Não, tudo menos ter razão.", como disse Pessoa há pouco por aqui. Durante este tempo, foram 83 postagens, aproximadamente 1988 acessos e 290 comentários. Muito obrigado a todos por isso! Sigo em frente então!
A primeira postagem dese blog, em Junho de 2006, trouxe uma poesia de Vinícius chamada "A Brusca Poesia da Mulher Amada". Não veio ao acaso; por beleza ou sem critério.Optei por ela especificamente por tratar-se do primeiro poeta que tive contato mais próximo, de menino mesmo. Foi, também, a primeira poesia, que não um Soneto, que conhecia de Vinícius. Há muito daquele instante, naquela poesia; Mas também há muito de prenuncia e outras tantas que valem até hoje:

"(...) comprem bastante papel;
quero todas as minhas esferográficas
Alinhadas sobre a mesa, as pontas prestes à poesia.
Eis que se anuncia de modo sumamente grave
A vinda da mulher amada, de cuja fragrânciajá me chega o rastro.(...)"

E, portanto, compreendendo os 12 meses que distanciam a minha primeira postagem desta atual; Mantendo a proposta de publicar mensagens que me acompanham e, ainda, conhecendo que esta poesia foi escrita em 3 diferentes momentos, trago, agora, a segunda parte:


A Brusca Poesia da Mulher Amada II
A mulher amada carrega o cetro, o seu fastígio
É máximo. A mulher amada é aquela que aponta para a noite
E de cujo seio surge a aurora. A mulher amada
É quem traça a curva do horizonte e dá linha ao movimento dos astros.
Não há solidão sem que sobrevenha a mulher amada
Em seu acúmen. A mulher amada é o padrão índigo da cúpula
E o elemento verde antagônico. A mulher amada
É o tempo passado no tempo presente no tempo futuro
No sem tempo. A mulher amada é o navio submerso
É o tempo submerso, é a montanha imersa em líquen.
É o mar, é o mar, é o mar a mulher amada
E sua ausência. Longe, no fundo plácido da noite
Outra coisa não é senão o seio da mulher amada
Que ilumina a cegueira dos homens. Alta, tranqüila e trágica
É essa que eu chamo pelo nome de mulher amada.
Nascitura. Nascitura da mulher amada
É a mulher amada. A mulher amada é a mulher amada é a mulher amada
É a mulher amada. Quem é que semeia o vento? – a mulher amada!
Quem colhe a tempestade? – a mulher amada!
Quem determina os meridianos? – a mulher amada!
Quem a misteriosa portadora de si mesma? A mulher amada.
Talvegue, estrela, petardo
Nada a não ser a mulher amada necessariamente amada
Quando! E de outro não seja, pois é ela
A coluna e o gral, a fé e o símbolo, implícita
Na criação. Por isso, seja ela! A ela o canto e a oferenda
O gozo e o privilégio, a taça erguida e o sangue do poeta
Correndo pelas ruas e iluminando as perplexidades.
Eia, a mulher amada! Seja ela o princípio e o fim de todas as coisas.
Poder geral, completo, absoluto à mulher amada!
Vinícius de Moraes

quarta-feira, 23 de maio de 2007

Luzes

Cedido em uma pétala de flores comuns estaria
Reportou-se, em direção a minha e parecia
Imaculada, aquela que supunha ser consorte, quem um dia faria.
Sedente de alegria, em seu busto escrito em poesia
Torna-te esta maravilha que se põe discreta – Ah, pretendia...
Inventar-me-ei para ti e recobrir-te-ei de palavras poucas e companhia
Afear as histórias que são outras e, por fim, reunir-me com o que tanto queria
Naturalmente. Que tinha ela de se comportar? Todavia, não sei ao certo se fazia
E pus-me, então – delinqüente – desejar-te seguro ao que se sucedia.
...
Realizou-me de revolta espontânea e fez-se o bastante, com que não sabia
Entregou-se mulher a valer! Daquela que uma só poderia
Gentilmente, desviou-me – astuta – onde estava e não por onde estaria
Incompleto de mim, surgi-me em tortura; Oh, Pai que desconheço, faça-a sadia
Nau de imensa gratidão; navega em minh’alma e por onde mais gostaria
Aquela que mostrou-se sozinha, a minha, o fim da rebeldia.
...
És decisão perdida, de vantagem aclamada e assim brilharia
Somente minha. Isto tudo que a patente a tua enuncia
...
Mulher de formas sem tipo igual - Exclusiva de mim conservar-se-ia
Indígna de dor; Rutilante alma de amor um só, diante dos desejo abnegaria
N´outro regaço deslumbra-te as lágrimas que suplicam-nos; todavia,
Hei de defrontar com a justa medida, merecida por ti e escreveria
A nossa evidente história de amor.


Luiz Felipe Angulo Filho

terça-feira, 22 de maio de 2007

Esta Velha

A intenção era dar por encerrado a sequência, curta, de Fernando Pessoa. Pois, inclusive, pus-me a me meter no meio com minhas bestialógicas, não sei se concluindo ou dando início à uma nova fase. Eu devia trazer Camões, ao menos português tal qual; Ou aproveitar-me da angústia de Bandeira. Pensei em postar "Martírio", de Junqueira Freire - talvez seja a próxima. Mas, como - ao menos aqui - eu não tenho que seguir nenhuma regra, volto, quase que inevitavelmente para Pessoa.
...
Esta velha angústia,
Esta angústia que trago há séculos em mim,
Transbordou da vasilha,
Em lágrimas, em grandes imaginações,
Em sonhos em estilo de pesadelo sem terror,
Em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum.

Transbordou.
Mal sei como conduzir-me na vida
Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma!
Se ao menos endoidecesse deveras!
Mas não: é este estar entre,
Este quase,
Este poder ser que...,
Isto.

Um internado num manicômio é, ao menos, alguém,
Eu sou um internado num manicômio sem manicômio.
Estou doido a frio,
Estou lúcido e louco,
Estou alheio a tudo e igual a todos:
Estou dormindo desperto com sonhos que são loucura
Porque não são sonhos.
Estou assim...

Pobre velha casa da minha infância perdida!
Quem te diria que eu me desacolhesse tanto!
Que é do teu menino? Está maluco.
Que é de quem dormia sossegado sob o teu teto provinciano?
Está maluco.
Quem de quem fui? Está maluco. Hoje é quem eu sou.

Se ao menos eu tivesse uma religião qualquer!
Por exemplo, por aquele manipanso
Que havia em casa, lá nessa, trazido de África.
Era feiíssimo, era grotesco,
Mas havia nele a divindade de tudo em que se crê.
Se eu pudesse crer num manipanso qualquer —
Júpiter, Jeová, a Humanidade —
Qualquer serviria,
Pois o que é tudo senão o que pensamos de tudo?

Estala, coração de vidro pintado!

Álvaro de Campos

quinta-feira, 17 de maio de 2007

:: Ultimamente

Ao vencê-la, sujeitei-me
Recolhi meu sentimento previamente compreendido
Modifiquei-o – em mim – e obtusamente
Excedi-me na intensidade dos advérbios, enquanto escrevia,
Moralmente, porém.

Pus a amuar-me com o ilustre que produzi anteriormente,
E na admissão de uma nov´alma, presumi instantaneamente os benefícios que tinha:
Quanta beleza os olhos meus reconheciam!
Peço que denuncie a ti do escondedouro que se manteve de mim, prudentemente;
Mas não a mim. Quero manter meu vigor,
Persuadindo-o com a notícia da doçura, estupidamente aprazível
Por então, obtive a virtuosa exibição dos cuidados que minha vista explorava.
Oras....Cale-se - Esforce-se para tanto!
Largue-a linda, simplesmente;

Quanta beleza minha vigília importava!
Em cumplicidade sob o caudilho que se apoderava compulsivamente de mim,
Encolhi os músculos da face em direção à imagem que via, repentinamente;
Rejeitei a antiga história que tinha, placidamente
Ajeitei - me ao centro e estendi-a todos meus dedos tremidos, apaixonadamente

Languescido, suportei sua veia bucólica de fragrância ideal
Deu-me vida movimentos viscosos que reprimiam a impaciência;
Como me podes não valer os olhos, se és essencial na compreensão de não ser?
E com mímica, aproximei-me do chão; Melodiosamente
Larguei-a linda, simplesmente.

Debilitado de tristeza, ergui-me refletido, finalmente
Surgi realizado de ser e escrevia, escrevia, escrevia...
Para dizer da formosura admirável que cansou-se de não me ter
Por definitivo. Como cativo, como cantor.


Luiz Felipe Angulo Filho

segunda-feira, 14 de maio de 2007

:: Liberdade de Minha Pessoa

Desafiei-me a mim,
Na presença de minha imagem que me seguia pela parede
Consumi o argumento recebido
E fiz-me, então, delinqüente disposto, expedito
Assumi um palco de pouca platéia
Mas todos aplicados; em silêncio
Formulei a primeira idéia, excelso.
Preferi as frases curtas, cujos limites me davam tempo de achar a rima
O conteúdo se fazia comum - conclusões de outrora
- E de candura envolvente, quase respostas.

Radiquei-me amigo do viver,
Na estupidez de minha pose
Convenci-me por ter a mim aplausos, cabeças em transe e concordâncias
Ao passo que desvendava todos os demais casos,
Comovido por mim, e a simpatia impoluta de quem me ouve
Movia-me permanentemente abastecido de convicções

Os cotovelos que tenho, erguiam-se admirados
E concluíam minha discussão comigo,
De remoque luso oblíquo como testemunha de veneração,
Sozinho, aprendia com quem ouvia
Repercutia os assuntos os mesmos, incessante e fiel
Não abstinha-me em manifestar-me,
Todavia, arrombava meu idêntico prejuízo moral
Forcei-me a coerência, todavia.

Mudos, a audiência se punha a escutar-me
Os gravetos d´água aplaudiam-me ao embate com o piso
Insistentemente, e minha letargia desaparecia,
Emudecia e dava lugar a moral
A qual, eu mesmo perdi
Ali, na extravagância do falecimento das efemeridades
Em virtude dos presentes, pus-me prudentemente parco
Apoiado pelos interpolados aplausos da quentura,
Que minha imagem já não via mais.

A demência punha-se a concurso a liberdade de mim;
Ao avesso à tradição dos cantos pejados
Estava-me eu, a largas explicações –
De curtas frases e rimas aquelas –
Decoradas pelo entusiasmo
Vi-me afortunado; liberto
Orgulhando-me do exercício
E do caráter da erudição, qual, foi – sim- indubitável!
Não houve discórdias nem apitos,
Não houve misericórdias nem sorrisos
Ouviam-se os gritos das pequenas partes d´água
Que suportavam ansiosos para livrar-me da insanidade que me pus

E, pois, restituir-me em quietação, elogios e silêncio.
Voltarei lacônico, talvez, mas penso que não.
Mas estarei, estúpido, a voltar um dia. Todo dia.

Luiz Felipe Angulo Filho

quinta-feira, 10 de maio de 2007

Quando Eu :: Fernando Pessoa

Sei muito pouco ou, melhor, conheço pouco de Caieros. Às vezes, na verdade, tenho textos de Pessoa mas não sei ao certo se foi ajudado por Alvaro ou Reis; A verdade é que, pelo pouco que sei, Caeiro é o mestre dos heterônimos de Pessoa. Mas, ao mesmo tempo, parece-me que se trata de uma versão menos filosófica, ele afirma que "pensar retira a visão" - Conlcuindo, Caeiro trás nesta poesia algumas verdades que o próprio pessoa rejeitou - ou disse o contrário. É muita esquizofrenia junta, muita genialidade. É por isso que é completo: Ele ao mesmo tempo que vive, pode dizer que está morto. E depois de morto, ainda pode dizer que está vivo...


Quando Eu

Quando eu não te tinha
Amava a Natureza como um monge calmo a Cristo.
Agora amo a Natureza
Como um monge calmo à Virgem Maria,
Religiosamente, a meu modo, como dantes,
Mas de outra maneira mais comovida e próxima ...
Vejo melhor os rios quando vou contigo
Pelos campos até à beira dos rios;
Sentado a teu lado reparando nas nuvens
Reparo nelas melhor —
Tu não me tiraste a Natureza ...
Tu mudaste a Natureza ...
Trouxeste-me a Natureza para o pé de mim,
Por tu existires vejo-a melhor, mas a mesma,
Por tu me amares, amo-a do mesmo modo, mas mais,
Por tu me escolheres para te ter e te amar,
Os meus olhos fitaram-na mais demoradamente
Sobre todas as cousas.
Não me arrependo do que fui outrora
Porque ainda o sou.

Alberto Caeiro

domingo, 6 de maio de 2007

Hoje que a tarde é calma e o céu tranquilo :: Fernando Pessoa

Em cada estrofe deste soneto me encontro. É muito mais confortável encontrar na poesia, do que viver na pele. Mas, se é por este caminho que devo seguir, fico feliz em ter a poesia para "Traduzir-me", como falaria Ferreira Goulart. Seja bem-vindo, Cancioneiro!

Hoje que a tarde é calma e o céu tranquilo

Hoje que a tarde é calma e o céu tranqüilo,
E a noite chega sem que eu saiba bem,
Quero considerar-me e ver aquilo
Que sou, e o que sou o que é que tem.

Olho por todo o meu passado e vejo
Que fui quem foi aquilo em torno meu,
Salvo o que o vago e incógnito desejo
Se ser eu mesmo de meu ser me deu.

Como a páginas já relidas, vergo
Minha atenção sobre quem fui de mim,
E nada de verdade em mim albergo
Salvo uma ânsia sem princípio ou fim.

Como alguém distraído na viagem,
Segui por dois caminhos par a par
Fui com o mundo, parte da paisagem;
Comigo fui, sem ver nem recordar.

Chegado aqui, onde hoje estou, conheço
Que sou diverso no que informe estou.
No meu próprio caminho me atravesso.
Não conheço quem fui no que hoje sou.

Serei eu, porque nada é impossível,
Vários trazidos de outros mundos, e
No mesmo ponto espacial sensível
Que sou eu, sendo eu por `'star aqui?

Serei eu, porque todo o pensamento
Podendo conceber, bem pode ser,
Um dilatado e múrmuro momento,
De tempos-seres de quem sou o viver?

Cancioneiro

quarta-feira, 2 de maio de 2007

Poema em linha reta :: Fernando Pessoa

Uma das razões pelas quais eu estou me propondo a publicar obras de Pessoa é o poema abaixo. Ele fala das fantasias do mundo real - de Príncipes e Princesas. Quem assina é Álvaro de Campos novamente, e tenho por mim que, ao menos parcialmente, ele é meu favorito. Minha mãe diz ter lido este poema para im há algum tempo e que eu não havia gostado. Certamente eu não estava pretando atenção, etava longe, em outro lugar, afinal, sou imperfeito e faço par com Álvaro de Campos.

Poema em linha reta

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

Álvaro de Campos