segunda-feira, 30 de outubro de 2006

Quero

Para quem já tentou escrever um Soneto - uma poesia, uma letra de música - já se pegou desconfortável com uma rima que não vem. Como se a rima fosse a responsável pelo sucesso da obra e não seu conteúdo. Eu já li poemas vazios, cheios de rimas, com palavras difíceis que nem sabia o significado naquela hora. A verdade é que existem estilos: Vinícius sequer falava ao telefone sem rimar, mas também jamais abriu mão do conetúdo. Drummond aparentemente já não se importava com isso, com as rimas, criou versos profundos, com poucas e as mesmas palavras, mas simetricamente ordenadas entre pronomes e parágrafos. Quanto mais me dedico a conhecer Drummond, mais entretido e admirado fico.
Quero que todos os dias do ano
todos os dias da vida
de meia em meia hora
de 5 em 5 minutos
me digas: Eu te amo.

Ouvindo-te dizer: Eu te amo
creio, no momento, que sou amado.
No momento anterior
e no seguinte, como sabê-lo?

Quero que me repitas até a exaustão
que me amas que me amas que me amas.
Do contrário evapora-se a amação
pois no dizer: Eu te amo, desmentes
apagas teu amor por mim.

Exijo de ti o perene comunicado.
Não exijo senão isto,
isto sempre, isto cada vez mais.
Quero ser amadopor e em tua palavra
nem sei de outra maneira a não ser esta
de reconhecer o dom amoroso,
a perfeita maneira de saber-se amado:
amor na raiz da palavra e na sua emissão,
amor feito com vibração espacial.

No momento em que não me dizes:
Eu te amo,
inexoravelmente sei
que deixaste de amar-me,
que nunca me amaste antes.

Se não me disseres urgente repetido
Eu te amoamoamoamoamo,
verdade fulminante que acabas de desentranhar,
eu me precipito no caos,
essa coleção de objetos de não-amor.
Carlos Drummond de Andrade

quinta-feira, 26 de outubro de 2006

A Máquina do Mundo

Me desanimo, particularmente, quando encontro um texto extenso e, como já tive esta experiência, vejo que são os menos lidos. Mas nem por isso deixei de postar a poesia abaixo de Drummond. Especialmente porque é de Drummond, Especialmente porque é boa. Não é uma leitura fácil, exige pesquisa, paciência e, inclusive, inspiração.[Este poema foi escolhido como o melhor poema brasileiro de todos os tempos por um grupo significativo de escritores e críticos, a pedido do caderno “MAIS” (edição de 02-01-2000), publicado aos domingos pelo jornal “Folha de São Paulo”. Publicado originalmente no livro “Claro Enigma”, o texto acima foi extraído do livro “Nova Reunião”, José Olympio Editora – Rio de Janeiro, 1985, pág. 300.] - Boa leitura!

E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável

pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.

Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera

e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,

convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,

assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,

a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
"O que procuraste em ti ou fora de

teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,

olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste... vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.”

As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge

distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos

e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber

no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar,
na estranha ordem geométrica de tudo,

e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que todos
monumentos erguidos à verdade:

e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,

tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.

Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;

como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face

que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,

passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes

em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,

baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.

A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,

se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.

Carlos Drummond de Andrade

segunda-feira, 16 de outubro de 2006

Arte Poética

Estive em Buenos Aires, acompanhado de Paula, minha maior companheira. Fiquei admirado com a cidade. Se a concepção deste blog é multiplicar conhecimento, Buenos Aires é uma excelente referência: A cultura preservada, a arquitetura variada, bairros com simbologias, uma cidade única, onde cada pedaço se assemelha a outro lugar do mundo. Se pudesse, escolheria Buenos Aires como uma boa cidade para descrever-se em um poema. Por isso, embalado e agradecido pela hospitalidade, trago um texto da maior referência literárea e poética argentina de todos os tempos, Jorge Luis Borges

Mirar el río hecho de tiempo y agua
y recordar que el tiempo es otro río,
saber que nos perdemos como el río
y que los rostros pasan como el agua.

Sentir que la vigilia es otro sueño
que sueña no soñar y que la muerte
que teme nuestra carne es esa muerte
de cada noche, que se llama sueño.

Ver en el día o en el año un símbolo
de los días del hombre y de sus años,
convertir el ultraje de los año
sen una música, en un rumor y un símbolo,

Ver en la muerte el sueño, en el ocaso
un triste oro, tal es la poesía
que es inmortal y pobre. La poesía
vuelve como la aurora y el ocaso.

A veces en las tardes una cara
nos mira desde el fondo de un espejo;
el arte debe ser como ese espejo
que nos revela nuestra propia cara.

Cuentan que Ulises, harto de prodigios,
lloró de amor al divisar su Itaca
verde y humilde. El arte es esa Itaca
de verde eternidad, no de prodigios.

También es como el río interminable
que pasa y queda y es cristal de un mismo
Heráclito inconstante, que es el mismo
y es otro, como el río interminable.

Jorge Luis Borges

À instabilidade das cousas no mundo

Não me considero um intelectual, nem nada que o valha. Muito pelo contrário, gostaria de o ser! Mas para tanto, buscamos o conhecimento da história, de grandes peças e conhecer, ao menos, os nomes e procedências dos que fizeram a diferença até aqui. Mas a questão que levanto não é esta. A questão é que atualmente, não se levantam mais questionamentos. O porquê das coisas - Será que faz-se entender que uma rápida pesquisa no google resolve qualquer problema? Não sou um intelectual, mas sou um curioso e por isso trago os questionamentos abaixo de Gregório de Mattos.

Nasce o Sol, e não dura mais que um dia,
Depois da luz se segue a noite escura,
Em tristes sombras morre a formosura,
Em contínuas tristezas a alegria.

Porém se acaba o Sol, por que nascia?
Se formosa a luz é, por que não dura?
Como a beleza assim se transfigura?
Como o gosto da pena assim se fia?

Mas no Sol e na luz, falta a firmeza,
Na formosura não se crê constância,
E na alegria sinta-se tristeza.

Começa o mundo enfim pela ignorância,
E tem qualquer dos bens por natureza
A firmeza somente na inconstância.

Gregório de Mattos

sexta-feira, 6 de outubro de 2006

Estranheza do Mundo

Me agrada quando um pensador explora ou questiona coisas simples da vida. É a partir das coisas mais simples que conseguimos, ao menos eu, as maiores reflexões sobre a vida, a existência e o todo. Este autor, Ferreira Goulart, foi-me apresentado por um tio, a quem tenho total admiração e confiança ilimitada.

Olho a árvore e indago:
está aí para quê?
O mundo é sem sentido
quanto mais vasto é.
Esta pedra esta folha
este mar sem tamanho
fecham-se em si, me
repelem.
Pervago em um mundo estranho.
Mas em meio à estranhezado mundo,
descubrouma nova beleza
com que me deslumbro:
é teu doce sorriso
é tua pele macia
são teus olhos brilhando
é essa tua alegria.
Olho a árvore e já
não pergunto "para quê"?
A estranheza do mundo
se dissipa em você.

Ferreira Goulart

quarta-feira, 4 de outubro de 2006

Chico Buarque: lucidez e coerência

Aproveitando o momento eleitoral, trago uma reportagem de Chico Buarque comentando o momento atual. Particularmente, estava curioso para ouví-lo falar. Não tenho dúvida que é um ponto de vista que deve ser lido, relevado e até discutido, se for o caso - Mas em nenhuma hipótese ignorado. Boa leitura!

A cada uma de suas entrevistas, o compositor e cantor Chico Buarque de Holanda sempre surpreende por sua lucidez e enorme coerência. Agora, no lançamento do seu novo CD, Carioca, ele novamente brilhou ao falar sobre a situação política brasileira. A direita deve ter ficado furiosa, com saudades dos tempos da ditadura militar que o perseguiu e censurou; a esquerda "rancorosa" deve ter ficado ressentida com seus irônicos comentários; já os setores da sociedade que, mesmo críticos das limitações do governo Lula, não perderam a perspectiva, ganharam novo impulso criativo para a sua atuação. Mas é melhor deixar o poeta falar, pinçando trechos das suas entrevistas na revista Carta Capital e no jornal Folha de S.Paulo:Sobre a crise política:É claro que esse escândalo abalou o governo, abalou quem votou no Lula, abalou sobretudo o PT. Para o partido, esse escândalo é desastroso.O outro lado da moeda é que disso tudo pode surgir um partido mais correto, menos arrogante.No fundo, sempre existiu no PT a idéia de que você ou é petista ou é um calhorda. Um pouco como o PSDB acha que você ou é tucano ou é burro (risos). Agora, a crítica que se faz ao PT erra a mão. Não só ao PT, mas principalmente ao Lula. Quando a oposição vem dizer que se trata do governo mais corrupto da história do Brasil é preciso dizer 'espera aí'. Quando aquele senador tucanocanastrão diz que vai bater no Lula, dar porrada, quando chamam o Lula de vagabundo, de ignorante - aí estão errando muito a mão.Governo mais corrupto da história? Onde está o corruptômetro? É preciso investigar as coisas, sim. Tem que punir, sim. Mas vamos entender melhor as coisas. A gente sabe que a corrupção no Brasil está em toda parte. E vem agora esse pessoal do PFL, justamente ele, fazer cara de ofendido, de indignado. Não vão me comover...Preconceito de classe.O preconceito de classe contra o Lula continua existindo - e em graus até mais elevados. A maneira como ele é insultado eu nunca vi igual. Acaba inclusive sendo contraproducente para quem agride, porque o sujeito mais humilde ouve e pensa: 'Que história é essa de burro!? De ignorante!? De imbecil!?'. Não me lembro de ninguém falar coisas assim antes, nem com o Collor. Vagabundo! Ladrão! Assassino! - até assassino eu já ouvi. Fizeram o diabo para impedir que o Lula fosse presidente. Inventaram plebiscito, mudaram a duração do mandato, criaram a reeleição. Finalmente, como se fosse uma concessão, deixaram Lula assumir. 'Agora sai já daí, vagabundo!'.É como se estivessem despachando um empregado a quem se permitiu o luxo de ocupar a Casa Grande. 'Agora volta pra senzala!'. Eu não gostaria que fosse assim.Eu voto no Lula! A economia não vai mudar se o presidente for um tucano. A coisa está tão atada que honestamente não vejo muita diferença entre um próximo governo Lula e um governo da oposição. Mas o país deu um passo importante elegendo LULA.Considero deseducativo o discurso em voga: 'Tao cedo esses caras não voltam, eles não sabem fazer, não são preparados, não são poliglotas'. Acho tudo isso muito grave.Hoje eu voto no Lula. Vou votar no Alckmin? Não vou.Acredito que, apesar de a economia estar atada como está, ainda há uma margem para investir no social que o Lula tem mais condições de atender. Vai ficar devendo, claro. Já está devendo. Precisa ser cobrado. Ele dizia isso: 'Quero ser cobrado, vocês precisam me cobrar, não quero ficar lá cercado de puxa-sacos'. Ouvi isso dele na última vez que o vi, antes dele tomar posse, num encontro aqui no Rio.Sobre o PSOL.Percebo nesses grupos um rancor que é próprio dos ex: ex-petista, ex-comunista, ex-tudo. Não gosto disso, dessa gente que está muito próxima do fanatismo, que parece pertencer a uma tribo e que quando rompe, sai cuspindofogo. Eleitoralmente, se eles crescerem, vão crescer para cima do PT e eventualmente ajudar o adversário do Lula.Papel da mídia.Não acho que a mídia tenha inventado a crise. Mas a mídia ecoa muito mais o mensalão do que fazia com aquelas histórias do Fernando Henrique, a compra de votos, as privatizações. O Fernando Henrique sempre teve uma defesa sólida na mídia, colunistas chapa-branca dispostos a defendê-lo a todo custo. O Lula não tem. Pelo contrário, é concurso de porrada para ver quem bate mais.