segunda-feira, 26 de fevereiro de 2007

:: Solitário Samba de Ogum

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"(...)Muitas mulheres e
nenhuma opção,
o que será, minha mãe? Isto é
solidão.
...

E então, sigo sozinho
buscando explicação:
Se era minha
estandarte,
porque não esperaste
(comigo),
toda nossa
apuração."
Luiz Felipe

sábado, 24 de fevereiro de 2007

Amar

Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
e o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o áspero,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.

Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.

Carlos Drummond de Andrade

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2007

Prece

Entre os redatores que já trabalhei na vida, alguns, claro, se destacaram. São diferenciados, escrevem e não apenas digitam - É fato que há muito de pessoal nesta observação, são pessoas de estios diferentes, culturas diferentes, interesses distintos e etc.. O texto abaixo é de um destes colegas inspirados. Trabalhamos por pouco tempo juntos, pois em 4 ou 5 meses ele se transferiu para uma outra empresa. Mas fica a amizade e principalmente a admiração: "Isto é escrever, é não datilografar", Truman Capote.
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"Uma prece eu peço
Peço com devoção
Devoto de muitas preces
Que já não crê na perfeição
Na prece, me parece
Certa alma nunca em vão
E devoto de um voto
No pleito de uma razão
Emoção que fica aqui
Sensação de estar aqui
Numa prece que não esquece
A razão da emoção
Sentir é vida
Pensar é alma
Fazer é calma
Em meio à escuridão
Não me segue
Não me apresse
Porque tal prece
Faz meu chão
Tenho fonte
Tenho água
Satisfaço com meu pão
Refletir o que há por vir
Lembrar o que vivi
Ecoando no caminho
Que na mão eu já senti
Sigo a seta
Miro o alvo
Vou à frente
São e salvo
Na minha prece
Sinto o eu
Resistindo tantos breus
Penso aqui
Mas vejo lá
O presente que pressente
O futuro é da mente
Na minha prece
Luz me desce
Neste cerne
Que me deste
Peço à prece
Não desamor
E o que aparece
Não padece
Duro saber
Raro fervor
Reza a lenda
Não me ofenda
Abra a fenda
De tua flor
No meio da prece
Um canto
Um pranto
Um encanto
E no fim da prece
O que aparece
É o fim da dor
"
João Aranha

terça-feira, 13 de fevereiro de 2007

Os Ombros Suportam o Mundo

"Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teu ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.
"
Carlos Drummond de Andrade

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2007

:: Livramento do Brumado

Tive um saxofone por certa vez - Gostava, e
gosto, do instrumento: considero-o único, símbolo máximo da boa música - Mas com
a mesma velocidade que tive, o vendi. E foi fácil! Meia dúzia de palavras
diretas como “vendo Saxofone tal, marca x, cor prata”, veiculado no lugar certo
e em pouco mais de dois dias me procuraram: “- Alo, é você que está vendendo um
Saxofone? Eu estou procurando um para comprar....” – Em 7 minutos tínhamos feito
negócio. Eu de São Paulo, sem conhecer o sujeito, ele do interior da Bahia de
uma cidade chamada Livramento do Brumado, sei lá há quantos quilômetros de
Salvador. Bem, mas como eu queria vender e ele queria comprar, fizemos negócio.
Simples assim.

Não muito distante disso havia uma outra história.
Os protagonistas eram um sujeito que procurava carinho, amor, buscava com
entusiasmo a paz e reunia poesias para entregar a uma mulher que as recebesse
saciada; E uma mulher, de uma cidade próxima, que buscava receber carinho, amor,
buscava com entusiasmo a paz e ansiosa por poesias. E, assim como encontrei o
cidadão de Livramento do Brumado, eles se encontraram.

Rapidamente
as coisas se ajeitaram. Quero dizer, rápido se comparado com a proporção desta
relação – Trata-se de uma vida, afinal, eles se encontraram, ou não? Ele dava
carinho, ela recebia; Ela dava carinho, ele recebia. O amor em pouco tempo
apareceu, antes era um palpite, no entanto ganhou vida! Cresceu, se fortaleceu,
virou amor. Então vieram as poesias, na hora certa, para não parecer exaltação
exagerada. E boas poesias! Algumas, inclusive, musicadas. E, por fim, a paz, que
mesmo hesitante e em hora alguma consolidada, apareceu - Um encontro, não uma
discordância. Retas paralelas, não transversais.

E foi assim,
imbuídos das mesmas aspirações, de desejos os mesmos, que, então, se separaram.
Ela reivindicava carinho; Ele acreditava dar... Ele reivindicava carinho, ela
aguardava receber, para então ser carinhosa. Ele insistia em reaver as poesias,
ela já não queria escutar. Ela acreditava no amor, ambiciosa pela vida; Ele
também. O amor, existia – será? – Sim, existia. De alguma forma ou dentro de
alguma definição. Contudo, ainda não havia a paz, pois, para que assim fosse,
haveria de ter aspirações em comum entre as personagens – mas não era assim? Tal
como o cidadão de Livramento do Brumado, que buscava um saxofone e o outro (eu)
queria vender.

Passados alguns anos, discordaram. Ela e ele.
Seguiram suas vidas, afastados, cheia de expectativas e valores os mesmos.
Abandonaram o acordo do encontro, em favor de renovarem suas buscas: Ele
agonizava carinho, amor, afoito pela paz, buscando poesias para entregar a uma
mulher que as recebesse saciada; Ela também.

Luiz Felipe

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2007

Espelho Mágico, por Mario Quintana

Existem algumas frases, textos e até histórias mais compridas que não saem de nossas cabeças: "Que genial", "Que inspiração" ou "Quanta precisão". Na minha opinião, as melhores são aquelas que lemos como se tivemos escrito - Se tivésemos que descrever uma coisa, não seriamos tão precisos. É assim que vejo cada frase de Mario Quintana. Ele não só é claro, como direto. Ele dá risada da vida e contradiz uma série de delongas mal contadas, boas de lágrimas, mas fracas de verdades.

Da observação
Não te irrites, por mais que te fizerem...

Estuda, a frio, o coração alheio.
Farás, assim, do mal que eles te querem,
Teu mais amável e sutil recreio...

Do estilo
Fere de leve a frase...E esquece...nada
Convém que se repita...
Só em linguagem amorosa agrada
A mesma coisa cem mil vezes dita.

Das Belas Frases
Frases felizes...Frases encantadas...
Ó festa dos ouvidos!
Sempre há tolices muito bem ornadas...
Como há pacóvios bem vestidos.

Do Cuidado da Forma
Teu verso, barro vil,
No teu casto retiro, amolga, enrija, pule...
Vê depois como brilha, entre os mais, o imbecil,
Arredondado e liso como um bule!

Dos Mundos
Deus criou este mundo. O homem, todavia,
Entrou a desconfiar, cogitabundo...
Decerto não gostou lá muito do que via...
E foi logo inventando o outro mundo.

Das Corcundas
As costas de polichinelo arrasas
Só porque fogem das comuns medidas?
Olha! Quem sabe não serão as asas
De um anjo, sob as vestes escondidas...

Das Utopias
Se as coisas são inatingíveis...ora!
Não é motivo para não querê-las...
Que tristes os caminhos, se não fora
A presença distante das estrelas!

Dos Milagres
O milagre não é dar vida ao corpo extinto,
Ou luz ao cego, ou eloquência ao mundo...
Nem mudar água pura em vinho tinto...
Milagre é acreditarem nisso tudo!

Das Ilusões
Meu saco de ilusões, bem cheio tive-o.
Com ele ia subindo a ladeira da vida.
E, no entretanto, após cada ilusão perdida...
Que extraordinária sensação de alívio!
(essa é a minha preferida, Luiz Felipe)

Dos Nossos Males
A nós nos bastem nossos próprios ais,
Que a ninguém sua cruz é pequenina.
Por pior que seja a situação da China,
Os nossos calos doem muito mais...

Da Eterna Procura
Só o desejo inquieto, que não passa,
Faz o encanto da coisa desejada...
E terminamos desdenhando a caça
Pela doida aventura da caçada.

Do Pranto
Não tente consolar o desgraçado
Que chora amargamente a sorte má.
Se o tirares por fim do seu estado,
Que outra consolação lhe restará?

Do sabor das coisas
Por mais raro que seja, ou mais antigo,
Só um vinho é deveras excelente:
Aquele que tu bebes calmamente
Com o teu mais velho e silencioso amigo...

Dos Sistemas
Já trazes, ao nascer, tua filosofia.
As razões? Essas vem posteriormente,
Tal como escolhes, na chapelaria,
A forma que mais te assente...

Do exercício da filosofia
Como o burrico mourejando à nora,
A mente humana sempre as mesmas voltas dá...
Tolice alguma nos ocorrerá
Que não a tenha dita um sábio grego outrora...

Das idéias
Qualquer idéia que te agrade,
Por isso mesmo... é tua.
O autor nada mais fez do que vestir a verdade
que dentro em ti se achava inteiramente nua...

Da amizade entre mulheres
Dizem-se amigas... Beijam-se... Mas qual!
Haverá quem nisso creia?
Salvo se uma das duas, por sinal,
for muito velha, ou muito feia...

Da Felicidade
Quantas vezes a gente, em busca da ventura,
Procede tal e qual o avozinho infeliz:
Em vão, por toda parte, os óculos procura,
Tendo-os na ponta do nariz!

Da Realidade
O sumo bem só no ideal perdura...
Ah! Quanta vez a vida nos revela
Que "a saudade da amada criatura"
É bem melhor do que a presença dela...
(essa eu tenho um carinho especial, Luiz Felipe)

Do Amoroso Esquecimento
Eu, agora - que desfecho!
Já nem penso mais em ti...
Mas será que nunca deixo
De lembrar que te esqueci?

Da discrição
Não te abras com teu amigo
Que ele um outro amigo tem.
E o amigo de teu amigo
Possui amigos também...

Da Preguiça
Suave preguiça, que do mau-querer
E de tolices mil ao abrigo nos pões...
Por causa tua, quantas más ações
Deixei de cometer!

Do ovo de Colombo
Nos acontecimentos, sim, é que há destino:
Nos homens, não - Espuma de um segundo...
Se Colombo morresse em pequenino,
O Neves descobria o novo mundo!

Do mal da velhice
Chega a velhice um dia...E a gente ainda pensa
Que vive... E adora ainda mais a vida!
Como o enfermo que em vez de dar combate à doença
Busca torná-la ainda mais comprimida...

Da moderação
Cuidado! Muito cuidado...
Mesmo no bom caminho urge medida e jeito.
Pois ninguém se parece tanto a um celerado
Como um santo perfeito...

Da calúnia
Sorri com tranquilidade
Quando alguém te calunia.
Quem sabe o que não seria
Se ele dissesse a verdade...

Da experiência
A experiência de nada serve à gente.
É um médico tardio, distraído:
Põe-se a forjar receitas
quando o doente já está perdido...

De como perdoar aos inimigos
Perdoas... És cristão...Bem o compreendo...
E é mais cômodo, em suma.
Não desculpes, porém, coisa nenhuma,
Que eles bem sabem o que estão fazendo...

Da condição humana
Se variam na casca, idêntico é o miolo,
Julgem-se embora de diversa trama:
Ninguém mais se parece a um verdadeiro tolo
Que o mais sutil dos sábios quando ama.

Da própria obra
Exalça o remendão seu trabalho de esteta...
Mestre alfaiate gaba o seu corte ao freguês...
Por que motivo só não pode o poeta
Elogiar o que fez?

Mario Quintana