domingo, 6 de maio de 2007

Hoje que a tarde é calma e o céu tranquilo :: Fernando Pessoa

Em cada estrofe deste soneto me encontro. É muito mais confortável encontrar na poesia, do que viver na pele. Mas, se é por este caminho que devo seguir, fico feliz em ter a poesia para "Traduzir-me", como falaria Ferreira Goulart. Seja bem-vindo, Cancioneiro!

Hoje que a tarde é calma e o céu tranquilo

Hoje que a tarde é calma e o céu tranqüilo,
E a noite chega sem que eu saiba bem,
Quero considerar-me e ver aquilo
Que sou, e o que sou o que é que tem.

Olho por todo o meu passado e vejo
Que fui quem foi aquilo em torno meu,
Salvo o que o vago e incógnito desejo
Se ser eu mesmo de meu ser me deu.

Como a páginas já relidas, vergo
Minha atenção sobre quem fui de mim,
E nada de verdade em mim albergo
Salvo uma ânsia sem princípio ou fim.

Como alguém distraído na viagem,
Segui por dois caminhos par a par
Fui com o mundo, parte da paisagem;
Comigo fui, sem ver nem recordar.

Chegado aqui, onde hoje estou, conheço
Que sou diverso no que informe estou.
No meu próprio caminho me atravesso.
Não conheço quem fui no que hoje sou.

Serei eu, porque nada é impossível,
Vários trazidos de outros mundos, e
No mesmo ponto espacial sensível
Que sou eu, sendo eu por `'star aqui?

Serei eu, porque todo o pensamento
Podendo conceber, bem pode ser,
Um dilatado e múrmuro momento,
De tempos-seres de quem sou o viver?

Cancioneiro