quarta-feira, 21 de junho de 2006

A Brusca Poesia da mulher amada

Minha mãe, alisa de minha fronte todas as cicatrizes do passado. Minha irmã, conta-me histórias da infância em que que eu haja sido herói sem mácula. Meu irmão, verifica-me a pressão, o colesterol, a turvação do timol, a bilirrubina: - Maria, prepara-me uma dieta de baixa calorias, preciso perder cinco quilos! Chamem-me a massagista, o florista, o amigo fiel para as confidências e comprem bastante papel; quero todas as minhas esferográficas alinhadas sobre a mesa, as pontas prestes à poesia.
Eis que se anuncia de modo sumamente grave a vinda da mulher amada, de cuja fragrância já me chega o rastro.É ela menina, parece de plumas... E seu canto inaudível acompanha desde muito a migração dos ventos Empós meu canto. É ela uma menina.Como um jovem pássaro, uma súbita e lenta dançarina que para mim caminha em pontas, os braços suplicantes do meu amor em solidão.
Sim, eis que os arautos da descrença começam a encapuçar-se em negros mantos para cantar seus réquiens e os falsos profetas a ganhar rapidamente os logradouros para gritar suas mentiras. Mas nada a detém; ela avança, rigorosa em rodopios nítidos, criando vácuos onde morrem as aves. Seu corpo, pouco a pouco abre-se em pétalas... Ei-la que vem vindo, como uma escura rosa voltejante; Surgida de um jardim imenso em trevas.Ela vem vindo... Desnudai-me, aversos! Lavai-me, chuvas! Enxugai-me, ventos! Alvoroçai-me, auroras nascituras! Eis que chega de longe como a estrela, de longe como o tempo, a minha amada última!

Vinícius de Moraes - Rio de Janeiro, 1963